quinta-feira, 21 de outubro de 2010

GÊNESE DO MAL?

Incômodas questões sobre o “nazi-fascismo” levantadas pelo filme A Fita Branca






Hitler é, provavelmente, a figura mais satanizada da história contemporânea. Nele foi centrada a figura do mal absoluto, tipificada em um único homem. É este o senso comum que perdurou por muitos anos – e ainda resiste. Como se o líder carismático que ele foi tivesse um poder inigualável de atrair simpatizantes ao seu projeto nazi-fascista, justificando-o inquestionavelmente. Como se os militares e civis a ele subordinados tivessem sido inevitavelmente manipulados. Como se a eficaz máquina de propaganda do partido nazista no poder tivesse feito uma lavagem cerebral no povo alemão, ocultando deste a barbárie. Como se a população alemã fosse inocentemente manobrada pela inteligência nazista. E mais. Muitos têm a ilusão de que a xenofobia e os campos de concentração e de extermínio foram uma invenção alemã.

Este tipo de visão foi a mais aceita pelo grande público durante muitos anos, e isto, em alguma medida, conveio a muitos interesses nacionais, como defende uma nova historiografia que associa a existência do fascismo às premissas nacionalistas. A busca pelas raízes do nazismo no fascismo – não apenas no fascismo italiano, mas no fascismo como um sentimento nascido com os nacionalismos de um modo mais abrangente – sempre foi algo relegado a um plano de importância menor, quando não ao esquecimento. O historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva, professor titular de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro levanta diversas questões acerca do tema em seu artigo Os Fascismos (Coleção “O século XX”, da Editora Civilização Brasileira). O professor defende a idéia de que não houve “o fascismo” (italiano, influenciando o nazismo alemão), mas sim vários fascismos, ao longo de várias épocas. As origens do fascismo teriam sido negligenciadas, e ainda, o próprio fascismo como se popularizou na Itália e Alemanha, teria passado, pós Segunda Guerra e pós Holocausto, por um tipo de esquecimento conveniente a vários setores de direita, desconsiderando-se e ocultando a continuidade do pensamento fascista, que acabou se revelando nos anos oitenta com a exposição na mídia de grupos fascistas em vários países. Ele diz que “grande parte da busca pelo esquecimento, ao lado de uma loquaz condenação quase que exclusiva ao que denominavam de hitlerismo (versão restritiva, personalística e exclusivamente alemã do fascismo), coube à historiografia ocidental”. Para Teixeira da Silva os historiadores tenderam a uma visão superficial do assunto, pois no momento imediatamente ao pós-guerra o tema dominante passaria a ser a Guerra Fria, objeto de atração inevitável de grande parte dos estudos em história que contemplavam a dicotomia capitalismo-comunismo. E, mais do que isso, escreve ele em seu artigo, “aos interesses estratégicos dos Estados Unidos, a primeira versão da história do fascismo, apaziguadora e restritiva, interessava diretamente na medida em que se contrapunha a uma das estratégias básicas dos comunistas: a tentativa de monopolizar e manter mobilizada a resistência, ou, ao menos, a resistência armada ao fascismo”. Pior. O fascismo não só passou por um período de esquecimento, como até mesmo “os Estados Unidos atenuavam a legislação sobre a desnazificação, restringindo-a apenas aos Hauptschuldige, os principais culpados (nos crimes do nazismo) e dispensando os comprometidos (Belastete), os comprometidos menores (MInderbelastete) e os seguidores (Mitläufer)”. Essa atenuação das punições acabaria, em pouco tempo, por transformar quase todos os envolvidos nos crimes de guerra praticados, em meros seguidores do nazismo passíveis de penas menores, como se quase-inocentes fossem. Desta forma, muitos seguidores do nazismo foram inocentados. O que motivou tal processo de absolvição é ainda uma incógnita e potencial objeto de pesquisa. O diretor e roteirista Michael Haneke, em seu filme A Fita Branca (Das Weisse Band) – premiado em 2009 com a palma de ouro em Cannes e indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e de melhor fotografia, feita de belíssimas imagens em preto e branco – fez em seu longa um estudo sobre a “inocência” alemã que antecedeu a Primeira Guerra Mundial e, claro a conseqüente ascensão do partido nazista. Indo, desta forma, além do que estamos habituados a ver no cinema sobre o nazismo: tramas ambientadas na Segunda Guerra Mundial. Em A Fita Branca a trama se passa às vésperas da Primeira Guerra, onde as sementes fascistas do nazismo já estavam cuidadosamente – ou inadvertidamente – bem plantadas.

A crítica cinematográfica internacional parece ter sido unânime ao laurear o filme por sua técnica. E, de fato, ela é impressionante. A fotografia usa e abusa de variações: ora longos planos abertos, com câmera estática em tripé, ora o uso de movimentação dinâmica que acompanha os passos de um personagem, mesmo na escuridão total, num preto e branco que deixa tudo tão distante, em contraste com os close-ups e o grande trabalho de todo o elenco, que deixa tudo tão próximo e íntimo do expectador: todo o elenco está irrepreensível. É um filme primoroso em quase todos os possíveis aspectos da arte cinematográfica. O mesmo unânime prestígio A Fita Branca não parece gozar ao lado de historiadores e sociólogos, que, pelo que li, dividiram opiniões. Há quem tenha visto no diretor a intenção de “germanizar” o fascismo, restringindo sua visão histórica. Há quem identifique na trama uma tentativa de explicação psicológica, baseada em traumas infantis (sofridos pelas crianças alemãs personagens do filme), para explicar o nazismo e o holocausto – o que novamente entra em desacordo com alguns historiadores, pois há uma idéia de que não se deve explicar eventos sócio-políticos que envolvem toda uma nação, ou mais nações, a partir do ponto de vista individual, numa ótica de transferência de repressão, que é objeto da psicanálise. Para a História, uma análise psicológica dos acontecimentos não é normalmente bem aceita. Não tenho eu a intenção de fazer parte deste julgamento. Eu teria que perguntar a ele (o austríaco Michael Haneke), por exemplo, o que o motivou a fazer um filme ambientado na Alemanha do começo do século XX. Bem... Ele poderia me responder que se sua intenção era fazer um filme sobre o nazismo a ambientação não poderia dar-se de outra forma – e isso foi, inclusive, amplamente divulgado. O narrador no início do filme faz essa menção em sua fala, deixando bem claras as intenções do filme: “os eventos que se passaram ali, naquele vilarejo, no início do século, são de extrema importância para se compreender os eventos dramáticos que aconteceriam na Alemanha décadas depois”. Esta chamada, utilizando-se o recurso de um narrador deslocado, deixa bastante claro o direcionamento pretendido pelo diretor, e penso que se não fosse ela, provavelmente, muitos espectadores jamais saberiam que o tema de A Fita Branca é o nazi-fascismo.


A aldeia retratada (no filme que é uma ficção com roteiro original) por Haneke é um pequeno povoado alemão onde famílias vivem de forma miserável. E não falo aqui de miséria física. A população que vive sob rígida doutrina protestante é infeliz em todos os sentidos. Ninguém sorri. Quando muito, nos momentos mais felizes, algum personagem esboça ligeiramente um sorriso. Sob a rigidez moral impingida com o esforço do preconceituoso pastor local, há um mar de lama onde o que de mais abjeto há no comportamento humano fica imerso. Uma sociedade patriarcal, exacerbadamente machista, praticante de todos os tipos possíveis de humilhação às mulheres, incluindo mesmo aquilo que tem caráter imoral, como a humilhação sexual, que chega ao seu limite quando um pai decide manter relações incestuosas com a filha, em substituição à esposa que ele insulta e humilha de todas as formas por julgá-la feia e velha. Um ambiente em que as crianças estão constantemente sob ameaça de punições, onde até mesmo o direto de brincar lhes é retirado. Um menino tem suas mãos atadas à cama para que não se masturbe durante a noite. Dormir sem jantar ou tomar surras são castigos naturalizados. Estas mesmas crianças que são expostas a rigores e humilhações por parte dos homens adultos, também mostram, em certas situações sua crueldade – ou devolvem, em dados momentos, a crueldade que é constantemente depositada nelas. Elas também sabem como ser cruéis. Com seu secreto sadismo, são elas, como fica subentendido ao final do filme, as responsáveis por vários crimes ocorridos na vila, como a perfuração dos olhos do menino com problemas mentais, filho do não menos sádico barão que comanda o local, como um tipo de senhor feudal. A punição ao menino deficiente por parte dos outros meninos seria uma representação precoce do que viria se manifestar durante o período nazista, quando muitos doentes foram eliminados. As crianças do filme, que recebem punições o tempo todo por motivos banais, ficam impunes ante suas maiores perversidades, cometidas fora do alcance dos olhares adultos. O menino deficiente era o contrário da pureza pretendida pelo sacerdote da aldeia. E, como toda “impureza” deveria ser punida – e as crianças da aldeia eram constantemente punidas pela falta desta pureza –, elas, as crianças, decidem punir o pobre menino, reproduzindo à sua maneira as regras que aprenderam. Mussolini com seu fascismo, Hitler com seu nazi-fascismo, e todos os seus colaboradores e reprodutores “propunham um mesmo programa, partilhavam a mesma concepção de mundo, criavam mecanismos similares de manipulação de massas, votavam o mesmo ódio e desprezo pelo liberalismo (...) e perseguiam da mesma forma minorias identificadas com a alteridade (ou seja, ‘os diferentes’), tais como judeus, homossexuais, comunistas e deficientes físicos”, diz Teixeira da Silva.

Dentre muitas cenas fortes, me chamam especialmente a atenção algumas que escapam ao clima de constante crueldade velada da trama, como aquelas que envolvem o menino, o pastor e o passarinho. O pastor faz severas recomendações ao menino que quer criar um passarinho. O menino é advertido sobre a enorme responsabilidade que tem agora em suas mãos, ou seja, a responsabilidade sobre a vida do animal. A criança aceita o desafio e consegue dar ao pássaro os cuidados de que ele necessita, alimentando-o e cuidando dele com zelo, o que dá orgulho ao pastor, também pai, sentindo-se este satisfeito pela “boa educação” que conseguira dar ao menino. Isso faz pensar sobre as possibilidades de que não só de forma patológica e brutal é feita a busca pelo poder, mas também de um senso de cuidado e proteção aos subordinados, aos cativos. O menino cuidou do pássaro, como o pai cuidou do menino. Assim como o líder absoluto de uma nação “cuidaria” dos compatriotas. Contudo, há uma triste questão: estariam todos, na verdade, vivendo entre grades, sob a ilusão da proteção?

É possível entendermos a vila do filme como um microcosmo, se pensarmos numa universalidade do fascismo. Desta forma retiraríamos dos alemães a exclusividade do empreendimento do fascismo, materializado nas operações nazistas. Pergunto: seria então, desta maneira, o fascismo fruto das ações punitivas e restritivas de um tipo de sociedade – enraizada em toda a Europa e outras partes do planeta – onde o excessivo poder conferido aos homens em detrimento das mulheres, onde os mais “fortes” são homenageados e respeitados, onde a rigidez de uma moral religiosa punitiva e restritiva dão a tônica do comportamento recomendável e aceitável? Seria o ideal de pureza desejado pelo pastor do filme algo impossível de ser alcançado pelas pessoas, que “debaixo dos panos” acabam cometendo todo tipo de pecado? Seria a obcecada busca por esta pureza o próprio desejo fascista? Seria o fascismo um fenômeno atemporal, fruto do amontoado de valores que construímos ao longo dos séculos, o que chamamos de humanidade? Teríamos vocação para crueldade, e por esse motivo assistir a um filme como A Fita Branca nós choca tanto, sendo estas imagens uma espécie de espelho indesejável do que podemos ser, a depender das circunstâncias?

Quando assisti A Lista de Schindler, de Steven Spielberg, imaginei que seria impossível o cinema realizar algo mais chocante sobre o nazismo. Agora vendo A Fita Branca relativizei minha idéia: este último me soa mais pesado. Talvez me pareça uma coisa mais feia e cruel do que a visão dos monstros, a visão de como eles nascem. Embora quando pequenos eles não tenham, a princípio, cara de monstro.

(L.F.)



A Fita Branca (Das Weisse Band)

Duração: 144 min.
Origem: Áustria, França, Alemanha e Itália
Ano: 2009
Direção: Michael Haneke
Roteiro: Michael Haneke
Fotografia: Chistian Berger



Para ler:
SILVA, Francisco Carlos Teixeira. Os fascismos. in: O século XX / organização: Daniel Aarão Reis Filho, Jorge Ferreira, Celeste Zenha – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. Volume 2. O tempo das crises: revoluções, fascismo e guerras.

sexta-feira, 12 de março de 2010

mulher em seda




sabe o que eu faço?
retiro tua casca
e te jogo na seda

te trago pra mim
e dou minha essência a ti
mulher de seda.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009



Quadrante



Tudo passará. Estou caminhando agora rumo ao meu vazio interior mais profundo e escuro. Invento pequenas mentiras sobre minha história pessoal a fim de completar lacunas – ou lapsos de realidade despercebida por mim os quais julgo por lacunas. Fazer trilhas entre os poucos e esparsos oásis do meu deserto interior. Todos nós somos os inventores de nossas histórias. Todos os acontecimentos reais ou fictícios são história. Tudo passará. Tudo passará... Não sei o que essa afirmação significa. Posso, no entanto, dizer que eles – homem e mulher a quem me referirei – não passaram com o tempo. O tempo foi quem passou, para frente e para trás, indo e voltando. Ele e ela foram e voltaram. Sempre foram. Sempre voltaram. Entrando e saindo. Indo e voltando. Vida é elástico.



Número um. Suja e com os cabelos colados, ainda se via sua beleza e fogo. Ela sugou meu sêmen como um bebê faz com uma mamadeira. Talvez como uma prisioneira faminta presa em um calabouço úmido faria com um prato de mingau. E ela era de fato uma prisioneira numa masmorra, e eu seu pretenso salvador. Matei sua sede e sua fome, e minha morte começou. Eu era quase um morto, mas ainda assim a prometi liberdade. As chaves estavam no meu bolso. Ainda com resquícios de mingau viscoso a incomodar a garganta ela me falou sorrindo: “– Que bom que você veio”. Ambos estávamos uns verdadeiros trapos humanos, sujos, fracos, rasgados. Chaves nas mãos. Mas isso não resolvia todo o problema, pois de um lado tínhamos todos os corredores e mais o pátio com os guardas, e do outro lado... Do outro lado o oceano indomável com todas as suas feras do abismo marinho para as quais nossos corpos fragilizados seriam uma conveniente refeição. Com base nisso, as chaves não significariam muita coisa. Mas eu tinha mais do que chaves. Eu tinha dinheiro. Como dinheiro? Eu havia guardado durante seis anos. Matemática e línguas. Eles precisavam do meu conhecimento, que eu os ensinava em troca de moedas: guardas, o cozinheiro, e até o chefe da prisão aprenderam comigo o que seus superiores hierárquicos não podiam ensinar. Com o dinheiro eu poderia subornar alguns guardas, mas era um grande risco ainda assim. E aí? Pularíamos no mar com o dinheiro?



Número dois. A metrópole fervia como lava. Lá em baixo os homenzinhos como palitos de fósforo prontos para queimar. Do alto do décimo quinto andar nós observávamos as formiguinhas e, ao anoitecer, os vaga-lumes sem asas. No calor do apartamento, pés no chão, leite quente com canela, moletom ultra macio. O maravilhoso despojamento nos intervalos de cada amor concretizado por nós, em carne, nervo e espuma. Percebíamos como havia já escurecido e não havíamos botado os pés fora do apartamento, e como isso se dera num piscar de olhos. Nós havíamos feito o tempo voar como águia num rasante. E logo amanheceu mais um dia. E mais uma noite chegou. E mais uma alvorada. E mais um arrebol. Aquele apartamento era o centro da Terra. Enlatados, caixas de cereais, macarrão instantâneo, essas coisas práticas... Para que houvesse mais tempo de retornarmos logo às atividades copulares. Uma semana se passara. Estávamos, com certeza, uns cinco quilos mais magros. Ela com sinais de cistite. Eu com dores pélvicas. Sabíamos que era o momento de dar um tempo e ir nos unirmos às formiguinhas lá em baixo, e também aos vaga-lumes sem asas. Então vestimo-nos decentemente e fomos à porta. Por motivo que desconheço, a chave não estava na porta. Procuramos apressados. Estava o chaveiro numa gaveta. Ótimo. Fomos lá. Nenhuma das chaves servia na fechadura. Alguma coisa estava errada. Arrombar? Não. Nem sei eu teria força para tal. Ligamos para a recepção. Ninguém atendia. Insistíamos. Mas nada de atenderem. Ficamos tensos. Ligar a televisão para acalmar. Ela ligou. O que passava? Nada. Nenhuma programação: apenas a chieira cinza da estática. Arrombar a porta. Tentei com chutes. Tentei com o meu tronco. Nada. Só cansaço. Atirar o sofá na porta? Sofá todo de espuma macia, sem estrutura de madeira. Sentada no chão, com a cabeça baixa, ela rezava e chorava.



Número três. O planeta estava no final da sua última glaciação, mas é claro que não sabíamos disso. Aliás, mal sabíamos falar. Não havia telefones celulares. Havia, sim, instrumentos manufaturados com lascas de pedra polida. Nossas vestimentas de couro peludo, como exigia o rigoroso inverno. Estávamos num estreito vale, na subida de uma colina e meu pé esquerdo estava fraturado. Depois de muito insistir em me ajudar a prosseguir na nossa necessária jornada – já que intimamente sentíamos, ainda que não pudéssemos explicar, que caminhar era preciso – ela declina a si própria o esforço. Por entre as rochas havia alguns montinhos de neve. Cansada de tentar me ajudar, ela me abraçou e tentávamos nos aquecer. Ela tinha dor de dente desde que havíamos iniciado a caminhada. Ela chorava ao meu lado. Esfriava mais e mais. Estávamos sem saída.



Número quatro. Ano 2156. Olhando a Terra do ponto de vista em que estamos, nesta colônia de férias lunar, penso no quanto evoluímos tecnologicamente – e é impossível não pensar nisso quando se está aqui. Tudo bem. Somos um casal à moda antiga e estamos passando nossa segunda lua-de-mel, ironicamente, na lua. E que diferença têm essas galerias para as dos grandes shoppings? O que curtimos aqui na lua não é a lua em si, pois ela é morta. O atrativo nesse lugar é o ser humano, é a auto-contemplação do tipo “veja aonde chegamos”. Todos os turistas que passeiam por aqui têm um sorriso no rosto. Todos com aquela sensação de que se é o máximo, e de que a humanidade é o máximo. Contudo, a sensação contrária também é comum diante da certeza da nossa pequenez face às estruturas cósmicas: “a humanidade é o mínimo”. Eu não tenho conseguido sorrir. Quando penso que na Terra ainda não resolvemos o velho problema da desigualdade social, da péssima qualidade de vida de várias populações, chego a me sentir culpado de estar aqui a passeio, torrando dinheiro. Quanto a ela? Ela sorri. É a primeira vez que estamos aqui – e isso após quarenta anos da construção do primeiro hotel lunar. Hoje a lua está cheia desses conglomerados turísticos, mas ainda assim, não fôssemos privilegiados financeiramente, estaríamos não mais que andando de metrô, como a maioria das pessoas no Planeta. Muita gente vai morrer sem ter conhecido a Europa. E nós dois aqui na lua. E daí. Que merda.

Estamos na fila para o ônibus que fará uma pequena viagem externa em direção a um local próximo ao lado escuro. Ela me abraça contente por sermos um casal relativamente feliz, rico e inteligente. Há meio século atrás, usaríamos a palavra amor para definir o que sentimos um pelo outro. Hoje o termo caiu, me parece definitivamente, em desuso. Pela janela do ônibus vislumbramos aquilo que encanta mais pelo estranhamento que pela beleza em si. É como o fundo do mar, de que se diz belo por ser estranho. E o fundo do mar é inóspito. Portanto o belo no sentido de estranho é diferente do belo no sentido de aprazível, como se disse muito tempo das ilhas polinésias, por exemplo. Ela não faz outra coisa senão sorrir. Chegamos na estação, de onde faremos o mais aguardado, que é o passeio externo, com as roupas especiais de astronauta. Chegamos. E lá fomos. Um pouco distantes do grupo e fora do seu campo de visão, de mãos dadas paramos um de frente ao outro e lemos nossos olhares excitados que diziam “que pena que não podemos tirar essas roupas agora mesmo e treparmos aqui atrás dessas rochas”. Não temos feito muito sexo ultimamente. Ela tem outro homem. E por mais que tenhamos, nós humanos, resolvido moralmente essa coisa de se ter mais de um par sexual sem que haja traumas e neuroses correlacionadas, sempre me fica um pequeno incômodo quando penso que o outro homem deva fazer sexo melhor que eu. Que eu dou a ela, sim, um tipo de alegria importante, e que ele dá outro tipo de alegria, que, por mais que os séculos tenham passado, ainda é a alegria mais importante para os homo sapiens e para qualquer outro animal: a alegria do sexo. E neste momento, ele, o outro cara, está lá na Terra, fazendo sexo com sua esposa que deve estar pensando no amante que dá a ela o que ele não pode dar, e o amante dela na outra mulher dele, e assim, numa reação em cadeia, o planeta inteiro, ao contrário de várias previsões feitas no passado, compartilha sexo como nunca na história humana, da mesma forma que, paradoxalmente, expõe nossa raça ao risco da extinção, por procriar tão pouco – menos que em qualquer outra época.

Olhos nos olhos mais uma vez. Só que agora ela está séria e diz estar passando mal. Não deveria estar, pois o oxigênio da roupa especial, mais a adrenalina do momento, proporcionam sempre uma sensação de tremendo prazer e conforto. Ela se senta. Eu saio para pedir ajuda. Ando com muita dificuldade na baixa gravidade do ambiente e não consigo avistar um turista sequer. Sinto-me numa encruzilhada. Vou em direção ao ônibus ou volto para ver como ela está? Volto. Ela está passando muito mal. Seria defeito no equipamento aclimatador acoplado na roupa? Tento pegá-la no colo. Não é nada fácil – mais pelo volume que pelo peso. Ela diz que não dá. Realmente não dá. Vou atrás do grupo. Por uma dessas negligências tão comuns ao homem, mesmo entre os mais respeitáveis técnicos, aconteceu: eles nos esqueceram. Tomara que quando derem falta da gente haja tempo o suficiente para voltarem e socorrê-la. Como somos irresponsáveis, todos nós... A aventura humana é bela, necessária, inevitável e medonha.



Eterno retorno. Moedas de prata num mar medieval. Lágrimas secas no assoalho de um apartamento onírico. Múmias da ultima glaciação numa montanha de neves eternas. Não existem urubus na lua. Quem poderia ser feliz sozinho? Quem poderia comemorar sozinho o prêmio de uma loteria, a publicação de um livro, a honra de uma condecoração? Gozar é gozar junto. Viver é viver junto, em suas mais variadas formas. Sei que tudo nessa vida deve passar, tudo passará e que tudo voltará. Como eles, que se foram. Eles que sempre voltarão.


*

sexta-feira, 21 de agosto de 2009








A caixa




Sim, o vermelho no fundo do vaso sanitário era mesmo menstruação. Aliviada por estar eu livre da possível iminência de uma gravidez avassaladora como um atentado terrorista, até me incomodei menos com o sangue que sempre fora tão incômodo, algo próximo do repulsivo pra mim. Sangrar lembra morrer. Ser mulher não é mole. Você tem que dar de qualquer maneira: se não dá seu sangue mensalmente, dará carne nove meses depois. O som que vinha da sala enchia a casa com a linda voz de Jeff Buckley cantando Haleluiah. Lembro da gente no parque de diversões como crianças nos brinquedos, nossos sorrisos eternos, e sei agora que a vida não é um parque de diversões. A vida é sangue.

Tenho algo a contar sobre sangue e sobre vida. Tudo começou – ora, que bobagem, isso não é um filme pra ter começo, e mal podemos saber se o mundo teve um começo. Bem. Na primeira vez que o vi ele parecia mais bonito e menos inteligente, e, de alguma forma, aquilo me atraiu. Camisa semi aberta deixando vazar os pêlos do peito. Um ar levemente infantil, mas não no sentido de inocente. Tive um pequeno tremor percorrendo todo o meu corpo: pés, ventre e peito. De trás do balcão perguntei em que eu poderia ajudar. Três meses depois estávamos nus numa cama, abraçados e lutando contra nossos egos. Havia muito tempo que eu não dormia nua abraçada com alguém, o que finalmente aconteceu naquela noite. Ele foi além das minhas expectativas. E eu também. Não firmamos pactos verbais, no entanto, nascia ali a minha amizade mais prezada. Ele e eu.

O que eu espero de um homem? Espero que ele seja bom. Bom de bem. Bom no sentido cristão da palavra. Ele tem que ser um pouco parecido com Jesus Cristo. Tem que parecer um pouco com Che Guevara. Tem que ser um pouco Marlon Brando. Talvez um pouco Lúcifer. Mas não um Lúcifer traidor e mentiroso. E, sim, um Lúcifer que arromba a porta do paraíso e entra com novidades. E foi isso o que ele fez. Ele foi meu anjo da segurança e meu demônio a me provocar indagações nunca antes por mim feitas. Penso em um homem que me faça perguntar coisas o tempo inteiro... Sei que isso é cansativo demais. No entanto, creio ser um ingrediente indispensável a um homem que venha ser meu. Meu... Meu... Às vezes penso que o mundo inteiro é meu. Noutras, nem meu umbigo me pertence.

As coisas íntimas, quentes, duras e úmidas que tocavam nós dois iam muito bem, obrigada! Um dia senti que precisava comprar uma cama mais forte, e assim o fiz. Ele achou a cama muito cara – ele sempre achava as coisas caras –, mas era um consenso entre nós que a velha cama não agüentaria mais. Noutro dia vi que precisaríamos de um carro para nossos piqueniques e ele concordou também em comprar. E acho que não compramos mais nada de valor. Tanto eu como ele nunca pudemos comprar muito. Contudo ele nunca parou de adquirir bugigangas. Certo dia ele trouxe uma caixinha colorida dizendo que havia comprado num camelô. Ele estava muito sério e taciturno, e, com cerimônia, disse que havia conhecido um homem muito estranho, de quem comprara a tal caixa. Perguntei que caixa era aquela e pra que servia e se havia alguma coisa dentro e quanto tinha custado e onde havia comprado e o porquê de ter feito e você precisa parar de comprar bugigangas e que caixa bonita tão colorida e posso abrir? “Não”, disse ele. “Não agora”.

Anoiteceu. A luz do abajur era amarelada e fazia nossos corpos nus ficarem avermelhados, destacando-se na paisagem negra do quarto. No criado-mudo, sob o abajur, a caixa. Enquanto fazíamos amor eu dava rápidas olhadas para ela, que também parecia olhar para mim. Era um pouco menor que uma caixa de sapatos e parecia ser bem velha, de papelão, com retalhos de tecido colorido colados. O sexo naquela noite era uma mera formalidade, uma preparação para algo maior que um rotineiro orgasmo, uma mera preliminar nervosa e formal – mas ainda assim prazerosa – para o que haveria de vir, algo relacionado, obviamente, ao assunto caixa colorida. Gozou. Nem cigarro acendeu. Silêncio. “E aí? Não vai falar nada?” “Falar o que?”, ele perguntou respondendo à minha pergunta, após o silencioso e tenso embate amoroso que fazíamos tão bem até no piloto automático. “A caixa, porra!”. Ele fez mais um silêncio, abaixando a cabeça e olhando para o nada, com seu gesto compreensivo à minha irritação e angustiada curiosidade. “Tá bom, a caixa”, respondeu. Levantou-se e fiquei sentada na cama olhando, nua, em todos os sentidos nua. Então ele me falou com o mais assustador tom de voz que eu poderia esperar vindo de alguém doce como ele. Assustador pelo silêncio contido naquela voz sussurrada e carregada de dor, medo, bondade e suicídio. “Nunca conte a ninguém o que vai acontecer agora. Nem para a sua melhor amiga”. Só me restava, paralisada, assentir com a cabeça. Me levou para o tapete onde sentamos. Com a caixa em mãos, que ele colocou no chão, entre nós, que nos fitávamos os corpos e o objeto. Abriu a caixa. “Não aconteceu nada...”, resmunguei com respeito. “Espere. Me dá a mão. As duas. Feche os olhos”. Obedeci. E assim nós fizemos.

Abrimos então os olhos. Eu abri primeiro. A mais chocante surpresa da minha vida até então. Por um momento pensei estar dormindo. As coisas ao nosso redor haviam mudado. O quarto era diferente. Era claro. Eram outras cores nas paredes. Era dia. E na minha frente ele era um menino de uns oito ou nove anos. Olhei para as minhas mãos delicadas, toquei meus cabelos. Eram os meus longos cabelos lisos e muito leves e soltos da menina leve e solta que fui e voltava, no encantamento daquele instante, a ser. Uma voz de mulher chama de um outro cômodo – provavelmente da cozinha – por quem deveria ser seu filho: “Marcos! Você está aí?”. Ele me olha e não tarda a responder à mulher, gritando com a voz verde e sábia de menino: “Tô aqui, mãe!” “Tudo bem, meu filho?” “Tudo bem, mãe!” “Não vai sair desse quarto?” “Espera aí, mãe, já vou!”. No centro do quarto ela, a caixa colorida, aberta, com a tampa caída ao lado. “O que acontece agora?”, perguntei. No que ele falou algo que eu não gostaria de ter ouvido naquele momento: “Se fecharmos a tampa agora, nunca mais voltaremos”. E concluiu ainda: “Se decidirmos fechar, não nos lembraremos do que aconteceu. Nunca mais”. Refleti sobre a grande esperança hipotética tola que muitos de nós temos ao dizermos que tudo poderia ser diferente se fôssemos mais jovens e pudéssemos agir com o equilíbrio e bom proveito que só a idade madura traz. Sabem como é... O lance de voltar a ser criança, mas com cabeça de adulto. Que grande besteira. Além do mais, nunca somos maduros o suficiente. Parece que apodrecemos antes de podermos provar o verdadeiro dulçor da vida. O dulçor da verdade dos nossos corpos vivos. O dulçor inacessível de nossas almas. Eu tinha naquele momento que tomar uma decisão entre fechar ou não a caixa. Entre começar de novo ou ter a possibilidade de voltar à vida normal adulta, com meus trinta e poucos anos, meus seios já ficando flácidos, minhas nádegas pesando, minhas pálpebras pesando, minhas olheiras, minhas marcas, tendo, contudo a possibilidade da experiência da viagem daquela caixa no meu currículo. Das duas opções, qual a mais válida? Naquela hora não pensei em qual seria a mais justa. Somos egoístas. Apenas pensei em qual seria a melhor pra mim.

Abri com cuidado a porta do quarto para que a mãe dele não me visse. Saí pisando macio em direção ao banheiro. De frente pro espelho eu fiquei chocada ao me ver menina. Meus olhos enormes como sempre foram, meu rosto imaculado, meus lábios cheios, meus cabelos longos ruivos – e que saudade eu tinha daqueles cabelos longos –, meus seios inexistentes. Seios. A falta dos seios talvez tenha sido o que mais me chocou dentre tudo o que eu via, na seqüência de choques psicoelétricos a que me expus sem muitas alternativas de defesa. Não era repulsivo aquele peito reto como de um menino, mas também não deixava de ser aterrorizante. Acho que nisso eu comecei a ter clareza sobre a questão de fechar ou não a caixa. Nisso eu percebi com quase-certeza de que preferia ser mulher a ser menina. Notei como eu gostava de ser mulher. Na verdade eu via a mulher no fundo dos olhos da menina no espelho. De repente a figura dele aparece também no espelho. Estava ele atrás de mim. E me tocou. Me tocou como faz um homem e não como faria um menino. Nós dois com os olhos no espelho. Dois rostos e corpos de criança. Ele, com seu peito encostado nas minhas costas, envolveu com seus braços finos a minha cintura e logo em seguida pôs as suas suaves mãos no local onde deveriam estar meus seios, como se elas, as mãos dele, fossem dois seios postiços em meu corpo. “Se fecharmos a caixa... Se nós fecharmos a caixa, esqueceremos este momento?” “Sim”.

Voltamos de mãos dadas pelo corredor que parecia imenso como todas as coisas que parecem imensas quando somos crianças. No quarto, a caixa aberta esperando uma decisão nossa. Sentamos novamente diante dela. “O que fazemos pra voltar?” “É só fecharmos os nossos olhos por um instante prolongado fazendo uma oração, e quando abrirmos eles, estaremos de volta ao nosso quarto escuro, e seremos adultos novamente”. Haveria então, desta forma, apenas o abajur amarelo no meio da realidade preta e nossos corpos nus a chorar inteiros, imaginei. Então, assim fechamos os olhos com medo. E inundados de coragem.

Olhos se abrem. Quarto escuro. Abajur amarelo aceso. Nossos corpos visíveis a olhos nus.Imediatamente ele fechou a caixa: agora podia. Então choramos como eu imaginava que ocorreria. Saímos no começo do dia, antes do sol nascer completamente, e, do alto de uma ponte, jogamos a caixa à correnteza. Boiou um pouco, e depois afundou. Não éramos mais como antes. Nada mais seria como antes. Os dias passaram e nosso comportamento havia mesmo mudado. Falávamos menos. Não que estivéssemos infelizes – muito pelo contrário. Apenas falávamos menos. Em compensação havia um fato novo a incidir em nosso cotidiano: nós brincávamos. Brincávamos feito crianças. E com brincadeiras de criança. As mais variadas brincadeiras infantis. Pique, amarelinha, pipa, polícia e ladrão, jogos de tabuleiro, jogos com palavras – como jogo da forca –, salada mista... O problema com a salada mista é que só tínhamos uma pessoa pra beijar, e a brincadeira terminava com aquilo que crianças não fazem, o que, no fim das contas, deixava tudo muito melhor. Depois de duas semanas brincando como crianças e pensando como crianças e gozando como crianças, certa tarde, num parque de diversões onde rodávamos como discos de newton sorridentes, de todas as formas possíveis de brincar e em todos os brinquedos, falei a ele, enquanto passeávamos cansados e excitados, comendo algodão doce como se fosse aquilo o mais delicioso manjar, sobre como eu era feliz com a sua companhia. Sabia que nem eu nem ele estávamos arrependidos de termos fechado a caixa e de tê-la jogado no rio.

Chegando em casa, níveis de adrenalina mais baixos, senti um pouco de enjôo. Teria sido a montanha russa? Três dias de enjôo se seguiram. Gravidez. Era a minha suspeita. Menstruação atrasada. Então não poderia ser outra coisa. Angústia antes de ir à farmácia e comprar um teste. “Amanhã eu compro”, pensei. Telefonei pra ele. Precisava contar a novidade. Eu não tinha certeza da gravidez, mas gostaria que ele compartilhasse comigo aquela incerteza. Chamou. Ninguém atendeu. Tentei de novo. E de novo, e de novo. Ele não estava no trabalho? Poderia ter dado uma saída. Que ele pudesse estar com outra menina – ou melhor, mulher – não passava pela minha cabeça, definitivamente. Bem... Não sei se eu pensei nisso. Traição? Não. Não seria. E como narradora ciente do passado eu posso afirmar que não se tratava disso. Desisti então de tentar ligar. Comecei a sentir cólicas. Ele voltou do trabalho mais tarde que de costume. Tudo bem. Cólicas. Sono. Noite aprofunda. Sonhos inquietos. Manhã: 6 e meia. Cólica. Banheiro. Vaso sanitário. Sangue. Graças a Deus, sangue. Eu não abortaria, acho. De toda forma, melhor assim. “Talvez um dia eu seja mãe. Não agora”. Depois do pequeno susto, não sei bem por que motivo, abandonamos as brincadeiras de criança. Que pena.

Vários anos se passaram. Como se fosse da noite pro dia, o vi na sala, sentado no sofá, indiferente a mim, com uma latinha de cerveja e uma barriga bem acima do recomendável, assistindo futebol – ele, que no passado bem pouco gostava de futebol. Eu lavava a louça do almoço na cozinha, e com as mãos cheias de espuma de detergente vislumbrava aquele novo homem, outrora tão especial, agora tão comum. Fui ao banheiro. Olhei para os meus cabelos e vi que a tintura necessitava de retoque. Alguns fios brancos começavam a pipocar. Isso sem falar nas marcas de expressão – esse apelido delicado que usam para substituir a palavra ruga. Minha menstruação estava bastante atrasada. No entanto, desta vez algo me intrigava: não havia motivos para que eu estivesse grávida, se é que me entendem. As brincadeiras na cama já não eram regulares, e, com certeza, no período em que eu deveria estar ovulando, não havíamos feito sexo. Não era agora o fantasma da gravidez indesejada o que me aborrecia. O novo espectro tinha o nome técnico de menopausa. Esta eu gostaria que esperasse por mais uns dez anos, sinceramente.

Já fazia uns quinze dias que minha menstruação deveria ter chegado. Tudo bem. descobri um frasco da minha tintura na dispensa. Cabelos devidamente retocados, fui eu pra rua na segunda-feira pela manhã. Era uma lindíssima manhã de sol e o espelho amanhecera dizendo que eu era bonita. Andando livre pela feira, sentindo todos os aromas gratificada, observando todas as cores e ouvindo com prazer barulho de gente que comprava e vendia naquela zona de comércio ao estilo medieval, eu ia. Então, numa barraca de quinquilharias avistei o objeto vivo: a caixa. A caixa era mais que um fantasma. A caixa era uma ressurreição encarnada. Era quadridimensional. Era, afinal, tátil. Perguntei quanto era. O cara esquisito da barraca não respondeu, apenas olhando pra mim. Percebi que a pergunta não era necessária. Percebi que era só eu pegar e levar. Que ela estava ali para que eu a pegasse e levasse pra casa. Peguei. Já em casa, entrei depressa, temendo a possibilidade de que Marcos estivesse lá e me visse assustada. Com ela guardada em minha bolsa de feira com bordados e fuxicos, fui direto para o banheiro, e decidi que se eu pudesse ter a chance de passar de novo pela minha inesquecível experiência vivida com ela há anos, eu optaria desta vez em terminar de forma diferente, pelo retorno à menina. Mas desta vez eu é que teria que dirigir o ritual, ao contrário de como ocorrera na ocasião em que fora ele quem me surgiu com o objeto misterioso. Quando ele chegou do trabalho, cabisbaixo como já virara praxe, eu, agora mais preparada psicologicamente, lhe falei: “Tenho algo aqui”. Então mostrei a caixa a ele. Passado seu terrível choque inicial, após longo e sufocante silêncio, pronunciou-se: “Eu não quero mais”. Puxa vida. Eu precisava dele pra fazer a coisa e algo me dizia que eu não poderia convencê-lo a participar. Cólica forte. Banheiro. Vaso sanitário. Sangue no fundo do vaso. Espelho. Lagrima e sorriso nos olhos. Olhos no espelho, olhos no vaso com a tinta vermelha viva. Espelho. Vaso. Espelho. “Foda-se”. E eu pensei – como costumava pensar em vários momentos da minha vida – sobre como era bom ser mulher. Tive vontade de gritar pelo basculante “Como é bom ser mulher!”. Ele apareceu na porta do banheiro querendo negociar a decisão sobre a caixa. Sem entrar, com as mãos no batente, perguntou: “Ainda quer?”. Minha resposta foi negativa. “Tá legal assim, Marcos. Também não quero mais”. Pensei em perguntar se ele me amava, mas preferi não, pois eu já sabia há muito tempo que isso não é pergunta que se faça. Sentenciei: “Amanhã pela manhã, antes do sol nascer completamente, iremos à ponte, falou?” “Cê quem sabe”. Carinho e compreensão eu pude perceber naquele momento em sua voz que sempre fora um misto de timbre de homem e menino. Eu nunca havia achado tão lindo o vermelho no fundo do vaso.

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sexta-feira, 17 de julho de 2009

Eu monstro

por Luciano Fortunato



Homenagem ao monstro – Era eu um dos quarenta e poucos homenageados da noite. Homenagem feita pela Câmara Municipal de Mendes aos cidadãos que se destacaram no último ano. Uma medalha grande, muito bonita, dentro de um estojo de camurça azul marinho também muito bacana. O que eu fiz pra merecer isso? Ora, participei, entre outras coisas, da produção de um curta-metragem que fora exibido na televisão, sendo aquele um produto cultural que colaborou de forma inquestionável para a divulgação de nosso pequeno município país afora. Afinal, muitos pagam caro para ter alguns segundos na TV, enquanto o Cachorro-Quente Vodu – o filme a que me refiro – foi exibido sem qualquer ônus para nossa cidade, pois tudo foi viabilizado pelo sucesso do amigo Elano Ribeiro, um dos quarenta selecionados no Brasil para dirigirem seus curtas, com exibição previamente garantida, num projeto de incentivo audiovisual patrocinado pela Petrobrás. Por conta de toda a movimentação que foi gerada pela produção e exibição do filme, Elano, eu, e Ana Clara, a menina que brilhou como atriz principal, acabamos sendo, portanto, homenageados, juntamente com várias outras pessoas de vários segmentos da comunidade mendense, com a “medalha de honra ao mérito legislativo”.

É claro que fico feliz. Um vereador – vice presidente da Câmara – que nem é meu amigo me indicou para ser homenageado, sendo ele então o autor da homenagem. Ele, Rubinho, parece ser um sujeito com sensibilidade, alguém que dá valor a iniciativas artísticas, e o fato de não termos qualquer laço de amizade dá credibilidade ao seu empenho, e dá ainda mais credibilidade e valor à minha medalha. A honra da medalha – que está atrelada, obviamente, à do Elano – eu divido com algumas pessoas, a saber: Mary Seabra, Ary Moreira, Emília Silveira, Juliette Silveira e Álvaro Alves. Este, o Álvaro, um cara muito mal compreendido em nossa cidade, uma pessoa que levantou sempre a bandeira da cultura. Foi através dele que tomamos conhecimento do projeto que viabilizou nosso pequeno, modesto, singelo e bonito filme de onze minutos.

E agora? De retorno à minha honrada insignificância caseira, o que fazer? Não que eu seja insignificante para os meus mais próximos. O fato é que minhas potencialidades artísticas – se é que são de fato existentes – não podem fazer minha família mais feliz. Provavelmente, muito pelo contrário. Artista não é gente. Ser artista é ser um E.T., é ser portador de uma doença. O meu lado artista me desumaniza. Nisso, a única coisa a meu favor é a possibilidade de relativização: é mesmo bom fazer parte da dita “humanidade”? Sou um monstro a publicar minhas esquisitices na Internet. Um monstro a fazer poemas e canções. Um monstro com uma medalha.

No Reino das Águas Claras eu seria um cano de esgoto negro, com minha estética torta. Sou um poluidor do rio da minha própria vida. E são tantas as fontes das quais me hidrato, a ponto de eu nunca saber se o que bebo é água ou veneno. Quero, egoisticamente, “diversão e arte”. Mas é isso a vida? Não seria ela um grande campo de batalha onde o que importa, de verdade, é comida, é sobrevivência? O fato de eu não gostar de conversar sobre dinheiro, ou melhor, sobre formas de ganhar dinheiro, preferindo sempre outros assuntos, parece-me às vezes uma postura brutalmente egoísta. A arte me parece um monstro devastador. O monstro da mentira que me capturou e me tornou monstro – um monstro que parece preferir arte a pão. Às vezes penso que mereço ser ridicularizado.


*


Doce ressaca do monstro – Pronto. Monstro posto, o que fazer agora? Deliciem-se os meus possíveis adversários com a carne fresca do monstro. Riam em escárnio. Conjeturem. Fucem o quebra-cabeça das minhas bárbaras confissões confusas. Usem minhas palavras contra mim: “– Vejam só! Ele próprio se declara monstro!” Mas quem seria eu a não ser o violentador de mim? Minha vítima sou eu. Meu inimigo sou eu.

Não sei se poderia eu usar a palavra escrita como expressão. Não sei por que cargas d’água me dei o direito de usar o sofisticado recurso dessa literatura sem livros de papel. Quem me lê, quase sempre lê mais de uma pessoa, pois sempre tenho mais de duas caras e dois corações. Talvez fosse melhor então ler outra coisa. Ou não tentar me compreender através do que eu escrevo, pois isso só dificultará as coisas. No começo deste texto, há umas cinco horas, antes do intervalo ao qual me reservei – pra se ter uma idéia do que eu estou falando – eu estava me sentindo um lixo humano. Agora não mais. Um cochilo. Um pedaço de pão. Umas azeitonas pretas. Um pouco de doce de laranja amarga. Um pouco de mingau com canela servido por Mary, e sou um novo homem. E assim vou me morrendo e me refazendo nestas bipolaridades. Há pouco eu era um verme rastejante sobre meus restos podres. Agora sou um artista relativamente contente em frente ao teclado escrevendo essas coisas, com meu headphone, meu disc-man, ouvindo as músicas que gosto. A propósito: o disc-man tem substituído meu carro velho e com defeito com relativo sucesso. Com este aparelhinho que acabei de comprar por um preço de banana, minhas caminhadas tem sido tão menos enfadonhas... Ainda pretendo conseguir uma vitrolinha portátil pra ouvir meus velhos discos de vinil com meu amigo maluco Marcelo Maia comendo carne e tomando uma bela cerveja numa mesa de bar.

Artista? Eu? Artista é o caramba!

sexta-feira, 31 de outubro de 2008



O Bertolucci que me faltava

Eu, cinéfilo de meia-tigela, não conhecia La Luna




Foi há muito tempo – há muito tempo mesmo – numa sessão das oito no extinto Cine Guanabara que estava eu, acompanhado de um amigo e sua família católica, num cinema completamente lotado para assistir a Jesus de Nazaré, de Franco Zefirelli. Contando há quem não acredite. Depois de passarem o saudoso programa Canal 100, com os jogos de futebol magistralmente registrados em película, vieram os traillers, que, para espanto geral, não eram, naquela noite em especial, muito ortodoxos, ou seja, não eram muito católicos – entre a meia dúzia de filmes anunciados antes da atração da noite, havia pelo menos 3 deles com cenas de sexo. Uma cena com um casal fazendo amor na praia com seus corpos na penumbra, outra com um casal nu, agarrado, rolando na grama, outra com um bacanal num saveiro e um rapaz se masturbando freneticamente. Um dos filmes eu me lembro do nome: O Sol dos Amantes, do qual nunca mais ouvi falar. Bem. O pai católico à minha esquerda tapava os olhos da filha de 8 anos. Os adolescentes nas fileiras de trás assoviavam de forma entusiasmada. Não é sonho. Isso aconteceu mesmo. E estávamos ainda na ditadura militar, saibam. Só que o Cine Guanabara era um tipo de território livre, anacronicamente às avessas. À beira da falência, aceitava menores pagantes para assistir a pornochanchadas. Eu mesmo fui um deles, sempre na esperança – e quase sempre na certeza – de poder entrar pra ver filmes proibidos para menores. Mas o caso dos traillers na sessão de Jesus de Nazaré foi mesmo o cúmulo da falta de organização e de vergonha.

Quanto às famílias católicas, ao zeloso pai a tapar os olhos da filha, eu fico imaginando o que sentiriam se assistissem La Luna, de Bernardo Bertolucci. Eu não sabia, La Luna foi exibido nesta mesma época naquele cinema. Outro dia uma amiga me falou sobre o filme, que assistiu naquela sala e gostou muito. Me surpreendeu que ela tivesse mesmo gostado do filme, já que, embora eu ainda não o conhecesse, sabia se tratar de um filme com uma trama que envolvia o assunto incesto. Um detalhe importante é que minha amiga é evangélica. Isso poderia fazer pensar que ela atiraria pedras no filme. Mas, ao contrário, ela me descreveu o filme como muito belo. Mas há um detalhe sobre essa minha amiga. Ela é muito ligada a temas psicológicos, leitora de Freud, Piaget e toda sorte de livros de psicologia. Isso explica, em parte, o fenômeno. Voltarei a falar sobre o filme com ela, qualquer dia desses.

La Luna, produção americana dirigida por Bernardo Bertolucci, rodada em Roma, produzida em 1979, é um filme que não poderia ter passado tão despercebido como passou. Um moralismo da indústria cinematográfica – ou do próprio público, o que é mais provável – pode explicar o fato dum filme brilhante como este viver nesse ostracismo. Só no último domingo tive a chance de assisti-lo em meu DVD. Era o Bertolucci que faltava pra mim. O filme praticamente não é citado em listas, por isso não havia gerado meu interesse – eu, um pequeno fã da obra do grande diretor italiano vivo. Como eu pude não ter visto La Luna antes? É assim mesmo. Há também filmes do Wood Allen os quais ainda não vi. Até o emblemático Persona, de Ingmar Bergman, só fui assistir há poucas semanas, veja só.

Não é a primeira vez que escrevo sobre Bertolucci e sexo. Quando se pensa nesses temas associados, logo nos vêm à mente Último Tango em Paris, Beleza Roubada, e Os Sonhadores. Assistindo a esses 3 filmes temos a nítida impressão de que poucos cineastas falam de sexo com tanta contundência. Mas é importante evidenciar que o sexo não é tudo nesses filmes, e sim parte inseparável de um todo, como é a vida. De qualquer forma, para Bertolucci são preferíveis estórias que envolvam famílias atípicas. E para minha surpresa, o último limite da atipicidade eu viria encontrar, tardiamente, no filme La Luna. Com uma atuação hipnótica da, infelizmente, quase desconhecida atriz Jill Clayburgh, La Luna conta a estória de Caterina, uma mulher que vive intensamente uma relação de afeto (amor, ódio, busca de auto conhecimento) com seu único filho. Joe, o belo rapazinho de dentes irregulares, o menino de cidadania americana, não sabe que é filho adotivo por parte de pai, assim com não sabe que é italiano, e filho de um italiano. Com a morte do infeliz pai americano – é impressionante a cena do enterro –, mãe e filho viajam para a Itália onde buscam reencontrar o rumo das suas vidas. Respeitada cantora de ópera, Caterina vê diante da nova vida um vigor esquecido. Aprimora seu canto, intensificando-o, e sendo cada vez mais reconhecida por seu talento. Tenta reaproximar-se afetivamente do filho – algo que houvera negligenciado em sua infeliz vida na América. Nesta busca pelo entendimento do (e com o) filho, descobre que ele está viciado em heroína. Então abandona a música – ofício no qual depositara toda sua paixão – para dedicar-se ao confuso e dependente rapaz. No entanto, a não menos confusa e dependente mãe, com essa intensa aproximação, deixa aflorar em si sentimentos em relação ao filho que personificam o mais rígido dos tabus sexuais, numa montanha russa de sentimentos, que falam de culpa e desejo, de interação entre presente e passado. Talvez falem de um passado mal resolvido à costa do Mediterrâneo.

Sim, perturbador e cheio de humanidade, La Luna é, sem dúvida, o mais chocante filme de Bertolucci. E certamente um dos mais chocantes filmes já produzidos. Um prato cheio, uma refeição completa para os freudianos, e indigesta para os puritanos. O que diria o papai à sua filhinha diante de algumas cenas do filme? O que diriam aos seus filhinhos as cuidadosas mães que jamais pararam para pensar no assunto. Que assunto? O fio, tenso ou frouxo, porém irrompível, que liga mães e filhos, do nascimento até sempre. A frágil fronteira entre os sentimentos que regem o nosso estar social e sexual, orientando nosso comportamento regulado por mecanismos morais de defesa. A proximidade entre libido e afeto. De fato. Não sejamos radicais. Este não é mesmo um filme para se assistir em família, depois da novela. Ele não deve, na verdade, ser assistido por qualquer pessoa. Seu público é específico. A intensa viagem psicológica de La Luna, me faz agora ver o eterno Último Tango em Paris como um mero passeio sensual – e olha que estou falando deste que é um clássico indiscutível do cinema erótico.
E ainda há tempo para outros temas em La Luna. A música, por exemplo, é de uma força impressionante no filme. Em alguns momentos ela é algo orgânico para a trama, como a seqüência da chegada do piano, ou como na emocionante cena final. Os bastidores da ópera ocupam também lugar de destaque, em cenas especialmente atraentes – poucos filmes não-musicais tiveram sets de ópera tão bem cuidados. Toda a relação da personagem central com sua própria voz é de uma emocionante musicalidade. Até mesmo quando grita, Clayburgh é musical. O contraste de culturas também é tocado pelo filme. O rapaz americano, com seus tênis All Star, é mostrado como um corpo estranho nas ruas de Roma. Sofre com a solidão. E como se sentem solitários Caterina e Joe...

Com roteiro original do próprio Bertolucci (toda e estrutura e construção dos personagens pode fazer-nos pensar que se trate de um roteiro adaptado), e a bela, e em muitos momentos inventiva, fotografia de Vittorio Storaro, este é o filme que salvou meu domingo de pré-verão. Apesar do tema espinhoso e enfumaçado, o filme é, na verdade, um domingo. Um domingo de sol ao Mar Mediterrâneo.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008



o homem bom


o homem bom desafia lúcifer
o funcionário de deus
lúcifer, o mordomo,
o espião, o capitão,
o inquisidor de deus

o homem bom cheira a flor
o homem bom inveja os heróis
por saber não poder ser tão herói como almeja
pois o homem bom é um poço da orgulho e vaidade
e tem em si o inimigo mais querido

o homem bom adora as mulheres
adoração de curvar-se mesmo
ele traz lembranças do calor do útero materno
ele reverencia cada útero que encontra em seu caminho
pois um útero para ele é um deus

o homem bom jamais esquece seus erros
é escravo da sua imperfeição
mas perdoa aos outros como gosta de se perdoar
tropeça, sangra o dedão
e segue de pé, na contramão de uma trilha

o homem bom pensa nos outros homens e mulheres
e o faz em tempo integral
e não esquece de nada, por saber
que a memória vale mais que a hora
hora é éter: memória é ouro

é mau o homem bom
é egoísta como um santo o homem bom
quer que o mundo fique melhor pra si, vejam só
mas um mundo melhor para todos
é apenas um efeito colateral do seu mundo perfeito.

(manhã de domingo, 12 de outubro de 2008)